domingo, 2 de outubro de 2011


O Quarto, a lamparina, eu e o morcego
                                                                                                   


                                                                                                                                         
    Se bem me recordo, este fato ocorreu por volta de 1967 ou 68; eu era um garoto entre 6 a 7 anos; o sexto filho,  da família Cardoso Naves.  Era de costume, por vontade de minha mãe, católica fervorosa; rezar o terço todos os dias. Minha irmã mais velha, Cida, conduzia a oração; os demais seguiam o ritual. 
    Todo mundo sabe; que pra fazer criança dormir, não há sonífero melhor do que induzí-las à rezar ou fazer leitura. Sendo assim, criança como eu era, também não fugia à regra; bastava chegar a hora da oração e eu me via tomado por um sono devastador e incontrolável. Semblante em desolação, pestana pesada, voz embargada e uma vontade louca de ir pra cama. As orações costumavam serem demoradas e ocorriam por volta das 21h, 21h30 e eu cuidava sempre. Já que eu não tinha muita noção de tempo; por volta das 20h30, involuntariamente, o sono chegava.  Dormia na mesma cama de um dos meus irmãos mais velho, o Antonio. O problema é que nem sempre ele estava disposto a ir dormir no mesmo horário; e então, era um ‘’ convencer ‘’ difícil’’. Naquela idade, eu tinha muito medo do escuro.
    Outra coisa que bem me recordo, e que não existia televisão, apenas radinho à pilha, que também não tínhamos. Cansadas das labutas diárias, muitas das famílias, realmente costumavam dormirem cedo. Era quase sempre assim... Os mais velhos diziam que gente da roça dorme com as galinhas. É isso mesmo, dormem com elas... E foi também assim, que decidi observar esses tão belos animaizinhos, personagens constantes que povoaram meu mundo infantil. Por várias vezes espiei atentamente as atitudes delas, durante o entardecer; para certificar-me da informação.  E realmente!  Nem bem o sol se punha no horizonte, lá vinham elas; aflitas, apressadas, olhando aqui, acolá; catando um bichinho aqui outro lá; no maior zum, zumzum. Parecia mesmo, até conversarem  umas com as outras; indecisas chegavam debaixo das laranjeiras, olhava pra cima, andando de um lado para outro. Quando tinha prole recém nascida, eram ainda mais confusas; era um desatino só; ameaçavam mil e umas alternativas debaixo das árvores e acabavam por ir dormirem no galinheiro com seus pintainhos. Já as que não tinham compromissos, titubeavam mais um pouco, até que de súbito, pulavam num dos galhos e continuavam a escalarem as árvores até se acomodarem nas copas a enfrentar as noites imprevisíveis. 
      Assim, nossas vidas seguiam seus cursos inevitáveis. Na minha casa, as orações continuavam a acontecer diariamente. E foi num desses dias que o pior me ocorreu. A hora de dormir chegou, e um sono irresistível tomou conta de mim. Chamei meu irmão, insisti, implorei, propus negociações e nenhuma das minhas estratégias surtiu efeito. Acabei por seguir para o quarto, sozinho, com muito medo. No entanto, visando ficar mais próximo da sala onde desenrolava a oração, achei melhor usar a cama de minha mãe. Olhei ao redor, coloquei a lamparina no suportezinho de madeira fixado na parede da cabeceira; observei bem a parede enegrecida pela fumaça de tempos; olhei para o berço velho, entulhado de roupas também puídas pelo tempo, ao lado esquerdo da cama de casal. Mirei bem o crucifixo de madeira, com as extremidades decoradas em alumínio e cristo crucificado também em alumínio. Observei as paredes escuras de barro; sem esquecer-me  do São Lázaro e seus cachorros esguios.
     O sono suplantou o medo, e então, encolhidinho no centro da velha cama de meus pais, cobri-me dos pés à cabeça. Tentei com dificuldade enfiar o cobertor em torno de todo o corpo. O medo era grande. Os  ratos como de costume faziam suas algazarras no madeiramento da casa; pois, o paiol de milho ficava bem ao lado. Tranquei a respiração e evitei movimentos. Passado alguns minutos, me dei conta que o sono havia se espalhado e desintegrado como num passe de mágica. No entanto, agora me faltava coragem para sair debaixo do cobertor. Um turbilhão de ideias macabras e aterrorizantes povoavam a minha cabeça. Sentia-me como um animalzinho encurralado, num quarto escuro e sombrio. Porém, o pior ainda estava por vir. Um estrondoso bater de asas, ecoou dentro do quarto. Senti meu corpo estremecido e arrepiado e uma sensação indizível tomou conta de mim. Tentei gritar, mas a voz entalada na garganta não saia... E aquela coisa, batia asas e dava voos rasantes sobre a cama.
     Depois de alguns minutos de agonia e tortura, suado debaixo do cobertor, um grito tremido e ofegante explodiu no quarto. Então, não demorou muito, para que toda a família viesse ao meu encontro. Saltei no colo de minha mãe, desmanchado em lágrimas.
    - Não chore meu filho, é apenas um morcego!... E antes de meu pai abrir a janela e expulsá-lo para fora, ainda pude observá-lo agarradinho no madeiramento do telhado.
      Muito tempo depois, vim saber, que algumas das tais espécies são hematófagas e vivem de sugar sangue de animais e até mesmo de humanos. Não sei se aquele fazia parte dessa coleção de vampiros noturnos. O que bem me recordo e que vivi uma noite de terror; da qual nunca me esqueci. 


                                                                                                                                                                      Roniel Cardoso       

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